Uma velha conhecida

Cruzando a fronteira, a paisagem dos sentidos muda. Os sabores ganham outras camadas e aromas – até flores viram doces!- a fala ganha uma melodia mais labial… É intrigante como limites invisíveis e uns poucos quilômetros de distância podem apresentar perspectivas humanas tão diferentes.

Ao chegar em Marseille, uma das mais antigas cidades portuárias da Europa, as mulheres com véu na cabeça, a abundância de tons de pele e as diversas línguas que se confundem na multidão escancaram a milenar interação entre os povos de ambos os lados do Mediterrâneo – França e Magreb, o norte da África.
Terra de confluências!
Um re-encontrar intenso, uma certeza de já ter estado por ali antes…
É a primeira coisa que a passarinha sente.


Novamente a passarinha se aninhou mais distante do centro, na região portuária, um lugar silencioso e não muito bonito, mas com árvores e bastante vento.

As gaivotas no céu lhe ensinam:
“Quando a ventania é forte, não gaste sua energia batendo asas, fique a planar até que a corrente de ar mude e favoreça o vôo. Enquanto isso, desfrute a paisagem e se mantenha observando, pode ser que veja no mar um cardume para o almoço”.
A passarinha anotou esta lição para quando suas asinhas quiserem afrontar os ventos da vida.
Os gregos que fundaram a cidade em 600 AC, tinham interesse inicial em trocar bens entre os povos do interior, especialmente vinho e escravos, e quando se aliaram ao Império Romano, a troca cultural foi natural. Após idas e vindas de muitos povos e conquistadores, guerras e pestes, foi incorporada ao reino da França no século XV e hoje é uma de suas cidades mais importantes.






Nos arredores do Vieux Port, o Velho Porto de charme decadente como um romântico imperfeito, as ruas são cheias de vida e espontaneidade: nas calçadas grupos de amigos se esquentam no frio sol de inverno e conversam em torno de uma xícara de chá, lojas vendem o mundialmente famoso sabonete de Marseille feito com puro óleo de oliva, perfumes, iguarias árabes e especiarias…
Tudo misturado de maneira tão informal que nos faz até esquecer que estamos na Europa.



Em um armazém, contou encantada 39 variedades de pimenta do reino, de todo o mundo – a busca por mais sabor nos alimentos é a motivação de grande parte do movimento dos mares nos últimos milênios.




Por todos os lados, delícias exóticas com aromas de flores misturados a amêndoas, nozes e especiarias em massas finas e crocantes, sempre acompanhados com chá quente! A passarinha lembrou da vó pombinha, que lambia o bico toda vez que via um baklava de nozes com calda de flor de laranjeira…
Moderando os desejos mas querendo o conforto do colo de vó, belisca um e outro quitute e se sente em casa.

Já comeu algo em busca de aconchego no coração?

Porque às vezes sentimos um cheiro e voamos direto para um momento da infância?



A função dos órgãos dos sentidos é atuar como portas, conectar nosso corpo com o mundo material.
O que sentimos através do olfato, paladar, visão, tato e audição é processado pela mente e associado às experiências que vivemos a cada momento… Um sinal que o cérebro primitivo do Homo Sapiens guarda para utilizar em momentos de necessidade.
Com o passar do tempo, essas memórias permanecem vinculadas às emoções e é preciso apenas um aroma gostoso para nos levar a uma tarde de alegria com nossa família.
Porém, vivendo em função dos desejos do corpo, buscamos a sensação de felicidade através dos órgãos dos sentidos – um bom exemplo é que gostamos de comer aquilo que traz boas lembranças à mente sem considerar que a principal função do alimento é nutrir o corpo. A indústria alimentícia fatura com nosso apego aos prazeres, simulando aromas e sabores artificiais “afetivos” em produtos que, de fato, geram mais doença do que saúde.


Mas a passarinha sabe que, quando o baklava crocante acabar, a vida segue.
E que o melhor sabor que sua avó lhe ensinou a apreciar foi o do Amor.
Esse, uma vez sentido, nunca tem fim.



